NOTAS SOBRE MULHERES DO MATO GROSSO E A ESCRAVIDÃO POR DÍVIDA

Ricardo Rezende Figueira1; Gelba Cavalcante de Cerqueira2;

Maria Amália Silva Alves de Oliveira3




Introdução

        Analisaremos aqui o discurso de mulheres que se relacionam, em algum momen-to e de alguma maneira, com pessoas que trabalharam no estado do Pará a partir dos anos 1970 em empreendimentos agropecuários, naquilo que cada vez mais tem sido reconhecido com trabalho escravo por dívida.4A análise leva em conta principalmente entrevistas efetuadas entre julho de 2000 e agosto de 2002 no Mato Grosso.5

        As fazendas nas quais essas pessoas trabalharam, para as mesmas atividades, ti-nham como subordinados principalmente rapazes e homens adultos. A preferência pela contratação de pessoas do sexo masculino se deu em função do esforço físico necessário para a formação de pastagem: roço e derrubada das matas. Além disso, pelas dificulda-des de acesso ao local do trabalho. Mesmo assim, as mulheres de alguma forma se en-volvem e sua presença, mesmo se rara, é demonstrada em pesquisas, como a de Neide Esterci (1994) e Rezende Figueira (2004). Elas sofrem impactos e são “vítimas” do pro-cesso que leva à escravidão, mesmo quando não são aliciadas ou acompanham o esposo ou companheiro, conhecido como peão, até a fazenda.

        Nesse estudo, elas falam a partir do nordeste mato-grossense que sofreu trans-formações profundas nos últimos quarenta anos e ali, no mesmo período, milhares de pessoas foram aliciadas para o sul e sudeste paraense. Uma e outra região eram de baixa densidade demográfica e, como resultado de políticas de ocupação desenvolvidas pelo governo federal a partir da criação da Superintendência do Desenvolvimento da Ama-zônia (SUDAM), na década de 1960, recebeu um fluxo expressivo de migrantes tempo-rários e permanentes.

        Foram escolhidos três grupos de mulheres para o estudo: as que possuem paren-tesco com trabalhadores escravizados, como as esposas, mães e avós; as que participam, ainda que indiretamente do processo de aliciamento de trabalhadores, como as donas de pensão e o grupo composto por prostitutas. Estas recebem os peões quando retornam das fazendas ou entre uma empreita e outra.6Nosso estudo pretendeu analisar questões como o lugar que elas ocuparam e ocupam na família, nas relações com os que partiram e com demais atores envolvidos.

        Todas as mulheres estudadas, como vieram de outros estados e regiões do país, foram “outsiders”, utilizando uma categoria cara a N. Elias e J. Scotson (1995), e hoje, algumas destas, pelos anos que já se encontram no Mato Grosso, de certa forma são “estabelecidas”, construíram uma identidade e relações sociais mais permanentes. Os autores, ao desenvolverem uma pesquisa em uma cidade inglesa no pós Segunda Guer-ra, descobriram que um bairro sofria forte estigma dos demais moradores. Era conside-rado um bairro perigoso, composto por pessoas que falavam alto, não cuidavam ade-quadamente da higiene etc. O que diferia este bairro dos demais não era a raça, a situa-ção econômica dos moradores nem a escolaridade de seus membros, mas ao tempo de moradia no local. O bairro era constituído por moradores que haviam vindo recentemen-te de outras regiões da Inglaterra e, desconhecendo os antigos moradores e sendo desco-nhecidos por eles, eram os “outsiders”, os de fora, os estranhos.

        A memória expressa nas entrevistas evoca àquelas que são parentes um “antes” e um “depois” da partida de casa para a fazenda; ou, no caso das donas de pensão e prosti-tutas, o contato com trabalhadores no período do apogeu da instalação das fazendas nos anos 1970 e 1980 e no período posterior, quando se tornou menor o fluxo de pessoas.



A região



        A pesquisa foi desenvolvida nos municípios de Vila Rica, Porto Alegre do Nor-te, Confresa e Cana Brava, no Mato Grosso. Boa parte da população veio de outros es-tados e deixou para trás parte das relações sociais do lugar de origem e tentou construir outras. De um lado, as pessoas tinham maior liberdade para ousar outros códigos de conduta, comportamentos, valores e conquistar uma nova identidade e lugar social. As relações de família poderiam não ter mais o mesmo significado. Um entrevistado, disse a esse respeito: “Aqui as pessoas se transformam. Podem ter não apenas amantes, mas até passear com elas pelas ruas”. No local de origem, tal gesto seria uma afronta não só à esposa, mas às famílias, e ao código moral adotado socialmente. Por ser uma região de fronteira, os limites do permitido e do não permitido são mais flexíveis.

        No Mato Grosso dos anos setenta e oitenta do século XX, há um “bandeirantis-mo” que atinge todos, ricos e pobres. Todos contribuíam de certo modo para a formação de uma sociedade “branca” em um território antes predominantemente indígena. “Nu-mericamente insignificante diante dos “chegantes”, a população mais antiga era obriga-da a estabelecer uma relação com os novos costumes, novas formas de falar, trabalhar e novo jeito de lidar com valores” (Rezende Figueira, 2004: 73-74).

        A representação das pessoas diante dos outros e de si mesmas, no Mato Grosso, tinha chance de tomar nova forma porque o passado não era conhecido. Alguém que estivesse fugindo da justiça podia tirar novos registros de nascimento e de estado civil e construir uma identidade moral diferente. As mudanças poderiam enveredar pela com-posição de uma nova família, pelo abandono de religião ou por um conjunto de outros comportamentos. Um profissional liberal que fosse reconhecido como exemplo de ho-nestidade no local de origem na nova situação poderia ser capaz de fraudar título de terra e tomar, com armas as posses de lavradores; ou um peão podia se tornar amigo de gato ou de fazendeiro, ser contratado como pistoleiro e construir uma trajetória de as-censão social passando pela grilagem7 de terras, roubo de madeiras e ouro. Outro que tivesse a imagem demolida por algum escândalo no lugar de origem ali a reconstruiria. Todos tinham empreendido uma migração, em busca de algum sucesso econômico ou profissional, ou estava ali por outra razão.

        As mulheres estudadas teceram um conjunto de representações sociais sobre o cotidiano delas mesmas e dos demais atores sociais. Elas têm em comum, algum tipo de relação com os peões; mas tem de diferente, a forma como estabeleceram a relação, inclusive pelo lugar social ocupado.



Avós, mães e esposas
“Antes”



        Parte das mulheres ouvidas está há mais de vinte anos no Mato Grosso, e seus filhos e netos foram, pela primeira vez, aliciados na mesma época. Eram jovens, alguns menores, hoje são adultos, alguns constituíram famílias e moram relativamente próxi-mos delas. Esposas, mães e avós parecem apontar para uma organização social dividida entre exploradores e explorados, estando seus parentes a ocupar a posição de explora-dos. A sua visão de mundo é balizada pela posição que seus parentes ocupam na divisão social do trabalho e indicam valores que as colocam contra os atores, que compõem o universo, que elas consideram dos “maus” e “ enroladores” – empreiteiros8 , fazendeiros, pistoleiros – que se contrapõem aos “bons”, aos não “enroladores”, os peões.


        O antes, aqui é entendido como o período anterior, quando se deu o aliciamento, a saída do parente para uma fazenda, o tempo em que ele esteve ausente, vítima da es-cravidão. É percebido como hora de medo e aflição – “ficava apavorada sem ter notícias dele, com medo de que fosse morto, capado, sei lá eram tantas histórias que a gente es-cutava (...)”.

        O primeiro aspecto que distingue as mulheres com vínculo de parentesco com os peões de outras mulheres, aqui analisadas, são as representações que possuem acerca dos “maus”, e seus intermediários. Ao levarem seus maridos, filhos ou netos engana-os e estes em vez de trazerem para a casa fartura e tranqüilidade, são submetidos a um “ca-tiveiro”. Como explica uma esposa,

                        

“Ele (o marido) foi e logo o homem aí (empreiteiro) não quis acertar quanto ia pagar o alqueire. Eu já achei errado. Porque eu acho assim, a pessoa que vai trabalhar tem que saber quanto vai ganhar. (...) Não poder sair é cativeiro porque se eu não puder sair a hora que eu quero, então por quê? É cativeiro. (...) Se tiver alguém para mandar em mim, que eu tenha medo dele, eu não posso fazer nada a não ser se ele mandar. É um cativeiro.”


        O empreiteiro é conhecido como “gato” e é percebido como explorador, no sen-tido de que se apropria do trabalho de outra pessoa sem a contrapartida da remuneração. Mas, ao mesmo depoimento, ela revela ter sido criada por um fazendeiro e sobre ele manifesta sentimentos contraditórios. De um lado o considera um pai, de outro, afirma que havia sido tratada com desprezo. “Eu era uma empregada, (...) tipo assim, como se fala meu Deus? Antigamente não tinha aquelas pessoas no cativeiro? Pois é, eu fui cria-da daquele jeito. (...) Cativeiro é assim: você nunca é a primeira. Você sempre é a últi-ma”. Em ambos os casos, há exploração, contudo, ela não considera com iguais o em-preiteiro e o fazendeiro. Quanto ao segundo, apesar do cativeiro sofrido, ela nutre sen-timento de afeto.

        Em outros casos, parece não haver distinção entre ambos. Por exemplo, uma senhora, cujo neto havia sido aliciado, tem uma compreensão dura quanto a responsabi-lidade do gato e do fazendeiro.

                        

Entrevistador: A senhora acha que tem gato bom?
Entrevistada: Eu acho que não tem não. Na minha idéia não.
Entrevistador: E fazendeiro bom?
Entrevistada: Também não. É bom até o povo trabalhar para ele.”


        Aqui, para ambos, são imputados sinais negativos e neste sentido, é comum em seus discursos, aparecer também as categorias medo, cisma e pavor, gerando uma posi-ção de evitação, mas, se necessário, de resistência e de reivindicação. No primeiro mo-mento, afastamento de situações nas quais estejam presentes os objetos de seus medos. O marido, o filho ou o neto devem evitar ir com o gato. No segundo momento, se o pa-rente vai e não retorna ou se retorna ferido, precisando de tratamento, a mulher pode procurar o gato ou o fazendeiro, tentando descobrir seus endereços, o número de seus telefones.

        Por outro lado, se a mulher evita o contato no primeiro momento, ela também nem sempre é desejada no trabalho da fazenda. Não conseguindo convencê-lo a ficar, a esposa pode acompanhá-lo, quando não houver impedimentos, tais como: a proibição do empreiteiro, a existência de filhos pequenos, alguém doente na família, além da dis-tância entre o local de origem e a fazenda A mulher e a bebida, em locais onde há mui-tos homens reunidos, são compreendidos como sinais de “confusão” “perigo” e “bagun-ça”. Mudam a ordem desejada. Há, contudo exceções. Mulheres que possuem relação de parentesco em alguns casos vão juntas e fazem a comida dos trabalhadores e, ocasio-nalmente, lavam suas roupas. Uma das mulheres entrevistadas, por exemplo, acompa-nhou o marido quando era jovem e não tinha filhos.

        Nos relatos femininos, a saída do parente é atribuída a razões econômicas. A esposa de um lamenta “a cidade é fraca, não ajuda. Tem que sair (...), como ele saiu”. Paralelamente, a ida para uma fazenda é revestida da noção de possibilidade de melho-rar a renda familiar. Como disse uma avó “é um chamado da fortuna”; ou uma esposa: “ele foi tentar ganhar mais um dinheirinho para juntar com o que nós já tínhamos e comprar umas vaquinhas”. No discurso dos peões, que foram para as fazendas quando eram menores, é possível detectar além da necessidade econômica, o desejo de se dis-tinguir, de sair para “conhecer o mundo”.

        A ausência de alternativas econômicas suscita um problema para as mulheres, que certamente não é apenas delas. A família, não conseguindo prover minimamente seus membros, perde, temporariamente, a prerrogativa da obediência. Mesmo um menor pode ser difícil impedi-lo de sair. Assim, segundo uma avó “não há o que fazer quando eles querem sair”. Insistir pode ser em vão e suscitar conflitos domésticos. A solução para o impasse é resolvida pela fórmula “não quero prender ele e, mais tarde, ele dizer não tive isso ou aquilo porque você não deixou”. A obediência, contudo é muito valori-zada e deve ser respeitada em outras situações. E, entre os membros da família, confor-me uma avó, os filhos “deveriam obedecer mais à mãe, porque eles ficam mais com a gente”.

        Se é complicado reter filhos, não é diferente com o marido. Nestes casos, ele utiliza sua posição de provedor responsável para justificar sua ida. Ela pode buscar retê-lo também através de palavras ásperas. É capaz de uma demonstração pública de seu contragosto, como relatou uma delas, “... quando ele subiu no ônibus, eu gritei para que ele descesse, para que ele não fosse, mas ele precisava do dinheiro para pagar a casa...”. Elas demonstram seus medos “falei dos perigos que ele iria correr”. Para evitar tensões familiares, a mulher dá sua “permissão” através do ato de abençoar a viagem: “vai com Deus” ou ainda “Deus te abençoe” (Esterci, 1994).

        As representações que a mulher faz para si mesmo sobre os gatos e os fazendei-ros, com base em tantas informações sobre a violência nas fazendas do Pará, produzem nelas medos que giram em torno da integridade física e da possível morte do parente. Por isso mesmo, ela acredita que deve encontrar a solução em casa e fora. Fora, no caso do Mato Grosso, significou ir ao Sindicato dos Trabalhadores Rurais do município e, através deste, ao bispo e à igreja local. O momento era de transição, 1983, tanto ali co-mo no país. Na região controlada há anos por uma oligarquia rural forte, havia vencido as eleições de São Félix do Araguaia, sede do município, um prefeito que fora agente de pastoral e tinha grande preocupação com a justiça social. Em casa, para ela, significou que caberia aos membros da família também se mobilizar de alguma foram, pois não podiam contar com a polícia local, com o poder judiciário ou com a imprensa. Era pre-ciso, por exemplo, ter “coragem de perguntar para o gato (sobre o paradeiro do parente), mas não brigaria com ele (com o gato)”. Sabe que deve fazer algo, mas com cuidado. Ou ainda, “não teria coragem de ir atrás, mas mandaria meu outro filho”. Ora a decisão de não ir atrás do desaparecido aparece não apenas em uma entrevista, mas em diversas. Isso pode ser atribuído ao fato da fazenda ser um espaço prioritariamente masculino no qual elas não são habitualmente admitidas. Mas há outros fatores como o desconheci-mento do local, para onde seu parente foi levado. Seria uma viagem longa, com sobres-saltos, para lugares desconhecidos e perigosos especialmente para mulheres desacom-panhadas.



"Depois"



        Algumas das entrevistadas relembraram fatos antigos, de vinte anos atrás, quan-do seus filhos ou netos foram aliciados a primeira vez. Nem tudo, no entanto, é lembra-do. A memória, que é uma percepção da realidade, se compõe de lembranças pessoais e coletivas, tem suas falhas naturais e seus esquecimentos são compreensíveis, inclusive pelo tempo. Há também lembranças que precisam ser esquecidas por serem dolorosas, por revelarem algo que se quer esquecer9 ou há lembranças que são guardadas e cultiva-das porque não se quer esquecer, porque foram agradáveis, servem de exemplo ou por-que se deseja alimentar uma vingança ou por outra razão.

        É possível perceber que entre as mulheres o retorno dos parentes foi vivido tanto como um alívio por tê-los vivos, mesmo se feridos; como também pode ser a confirma-ção do fracasso, pois chegou tão ou mais pobre do que quando saiu. Mas para que o sistema da escravidão por dívida funcione, alguns precisam chegar com algo. O fracasso não pode ser de todos, todo o tempo. Quanto ao que fracassou, é especialmente difícil, pois prometeu trazer dinheiro (para “comprar vaquinhas” ou “pagar a casa”) e chegou com as mãos vazias. O fracasso da viagem confirma, para elas, a certeza de que a ida às fazendas não compensa e lhes dá força para se manterem irredutíveis quanto a um pos-sível novo aliciamento. Uma delas, cujo esposo retornou gravemente ferido, explica que “ele não vai mais para fazendas (...), ele deve arrumar emprego nas cidades... Ele não vai mais porque eu não deixo”. Talvez o esforço seja inútil, mas ela está convencida de que ele não pode empreender nova viagem às fazendas paraenses.

        No passado, elas eram recém-chegadas ao Mato Grosso e precisavam construir com seus parentes uma identidade, pois faziam parte ali, naquela geografia humana e física, de um grupo heterogêneo e proporcionalmente expressivo de outsiders. Agora, as relações sociais foram construídas e pertencem ao grupo de alguns dos estabelecidos. Dominam os códigos que regem aquela estrutura social e são reconhecidas pela comu-nidade.

        A saída do parente as colocou em uma posição comum no passado com outras famílias que eram estabelecidas – o parente escravizado. Tinham então algo em comum e algo diferente. O fator em comum as levou estabelecer relações com os aliados mais visíveis, no caso, a Prelazia de São Félix do Araguaia, cujo bispo já era reconhecido internacionalmente como defensor dos posseiros e peões, e com o Sindicato dos Traba-lhadores Rurais.


        Ora, o filho de um dos diretores do Sindicato dos Trabalhadores Rurais, portanto com mais tempo na região, de certa forma, já naquele momento um estabelecido, havia sido também aliciado junto com outros dois, estes outsiders. O Sindicato mantinha relações com a Prelazia e com seus agentes de pastorais, inclusive com o novo prefeito de São Félix. Acionando o bispo, o prefeito e também a Comissão Pastoral da Terra, o caso teve desdobramentos na justiça que se prolongaram por muitos anos. Tudo isso levou a um aprofundamento das relações entre as pessoas e as famílias facilitando a incorporação dos que chegavam aos que ali estavam. Os “chegantes” não eram mais os estranhos.

        As antigas outsiders falam agora em outra posição. Olham o passado com mais experiência, conhecem melhor as pessoas e para elas os que chegaram depois delas, estes sim, são os outsiders. Naqueles anos, seus parentes não só eram outsiders no Mato Grosso, mas iam em caminhões ao Pará como outsiders em relação não apenas ao em-preiteiro e aos seus homens, mas também em relação aos próprios companheiros de via-gem e chegavam ao Pará em uma situação duplamente de estranhamento: entre o pró-prio grupo, em relação às pessoas que ali se encontravam e ao próprio estado que come-çavam a conhecer.

        O tempo mudou, o período do governo militar terminou em 1985 e dez anos depois a sociedade civil e o governo federal já eram mais sensíveis ao problema da es-cravidão. A criação do Grupo Especial de Fiscalização Móvel, subordinado à Secretaria de Inspeção do Trabalho (SIT) do Ministério do Trabalho e Emprego, tornou mais ágil e eficiente a repressão ao crime. Nesse contexto em Vila Rica foi criado um espaço privi-legiado para fazer ecoar as denúncias e buscar soluções. A Igreja Católica, o Sindicato dos Trabalhadores Rurais, o Sindicato Rural, a Câmara dos Vereadores e a Prefeitura formaram uma “Comissão” para “combater o trabalho escravo”. Duas pessoas foram especialmente chaves na existência da Comissão. Uma delas foi a vereadora que presi-dia a Câmara. Na fazenda de sua família havia sido detectado pelo Grupo Móvel traba-lho escravo e isso a incomodava e interessava-lhe negociar uma solução para os seus familiares. O outro interlocutor privilegiado era o sacerdote que gozava de liderança e apoio não apenas de comunidade local, mas da própria SIT. A conjugação de diversos fatores nacionais e locais possibilitou, por um tempo, a existência de um mecanismo de controle social que resgatava valores e possibilitava um tratamento mais digno para pes-soas que até então eram submetidas a uma série de arbitrariedades e recebiam um trata-mento inferior ao dos animais nas mesmas propriedades onde trabalhavam.



Donas de pensão
“Antes”



        No Mato Grosso, há ainda algumas hospedarias voltadas para trabalhadores e boa parte delas é dirigida por mulheres. As donas de “pensões”, ou donas de “hotéis pioneiros” também conhecidos como “hotéis peoneiros” ou “hotéis de peão”, são as proprietárias destes estabelecimentos. Elas de alguma forma mantém relações com di-versos atores que compões a rede de exploração do trabalhador e, dependendo da cir-cunstância, em função do lugar social que ocupam ou da natureza afetiva estabelecida, percebem os gatos, peões, fazendeiros de forma distinta de outras mulheres entrevista-das ali.

        Em geral as pensões são localizadas nas proximidades das rodoviárias e, quando os peões chegam à cidade em busca de trabalho, não tendo dinheiro sequer para comer, estas mulheres se aproximam e oferecem-lhe a hospedagem, explicando que eles paga-riam a dormida e a alimentação quando fossem contratados. Os “hotéis” são lugares onde, nestas circunstâncias, é iniciada a dívida que escraviza. Uma das proprietárias explicou o processo:

                        

“(...) a gente estava juntando turma naquela época, a gente hospedava eles. Jun-tava turma para os gatos levar para as fazendas... Eles se hospedavam e ficavam. Eu dava almoço, janta, café e pouso. (...) O gato acertava as contas dos peões comigo e quando terminavam a empreita, os peões acertavam com os gatos (suas dívidas), aí eu não tinha mais nada haver (com isso).”


        As donas de pensão fazem um contraponto às mulheres que possuem relação de parentesco com os peões, pois reforçam de forma direta o sistema de aliciamento da mão-de-obra. No exemplo citado, a proprietária normalmente conhece os gatos e os avisa quando tem um número determinado de peões já hospedados. Mas esta proprietá-ria lava as mãos quanto às responsabilidades, por isso afirmou “aí eu não tinha nada haver (com isso)”. Ela demonstra fazer parte de um esquema de aliciamento, mas não se sente com responsabilidade moral ou jurídica diante dos abusos ou ilegalidades cometi-dos na fazenda. Outras vão além. Negam inclusive serem parte ativa no esquema de aliciamento. Um destes explica conhecer os gatos, mas não os avisa que tem peão dis-ponível: “naquele tempo, tinha os gatos certos e aquelas pessoas já vinham na certeza que tinha aquela pessoa para levar... Eu não mandava avisar quando os peões chegavam, eles é que vinham...”. Outras ainda, se portam como se não os conhecessem, mas sabem onde eles aliciam e dão a “dica” como explicou uma dona de pensão “falava assim pra eles, vai lá pra porta do Bradesco ou... vão ali para a porta do banco que vocês vão dife-renciar um peão do patrão, e aí vocês procuram serviço. Porque eu não conheço quem mexe com fazenda...”.

        A respeito dos empreiteiros são comuns afirmações como as que seguem: “os gatos são muito bons para os peões” e os fazendeiros são “gente boa porque ajudam as pessoas. Porque se não tiver um trabalho, as pessoas passam muito baixo...”. Em geral empreiteiros e fazendeiros ocupam um lugar positivo no discurso destas mulheres. Eles são sinônimos de trabalho e recursos econômicos mais abundantes. Contudo, elas per-cebem que há um conflito de interesses que envolve a relação peão/gato: “eu não tinha problemas com gatos porque eles sempre pagavam direitinho. Agora os peões sempre falavam que tinha uns (gatos) que roubavam eles. Diziam que a camisa deles (gatos) tinha sete bicos(...) Porque aumentavam a conta (...)”. Principalmente aumentavam o valor da conta do barracão, onde os trabalhadores eram obrigados a adquirir seus produ-tos.

        A relação peão/dona de pensão em geral é efêmera. A efemeridade, o ligar-se e desligar-se do trabalhador com a pensão, produz desconfianças e estranhamentos recí-procos. A proprietária, por exemplo, tem medo do trabalhador ser violento ou de fugir de noite sem pagar a conta. De um lado ele é ocasião de lucro e da existência da pensão, do outro, este lucro depende do aliciador que vai saldar a dívida do peão com o estabe-lecimento.

        A percepção acerca dos peões reflete dois aspectos. O primeiro é o de serem outsiders, pois estão em trânsito e ali não têm relações de parentesco e amizade; o se-gundo aspecto é o lugar social que ocupam. São a parte mais vulnerável e explorada da relação. Isso produz uma forma peculiar no relacionamento entre as mulheres e os pe-ões. Assim, elas os percebem negativamente como:

                        

“Peão é um bicho, se não tiver uma pessoa que põe uma moral neles... Eles que-rem é destruir... Aquilo que eles fazem (recebem do gato) eles não ligam de gas-tar, de ganhar cinco reais hoje e gastar tudo hoje. Eles não guardam para ama-nhã. Se não tiver um pessoal para orientar, eles gastam tudo.”


        Ou, podem afirmar ainda que “peão ganha dinheiro, mas bebe tudinho e gasta tudo na mulherada”. Ou “eles apanham (dos gatos), mas gostam”. E ainda

                        

“Às vezes ficavam três, cinco dias aí e o gato estava demorando a vir, eles dor-miam e não amanheciam. Eles iam embora fugidos com uma conta aí de cem re-ais, cento e cinqüenta, oitenta... E eu ficava com o prejuízo, porque o prejuízo destes, o gato não pagava não”.


        Quando afirma que eles gostam de “apanhar”, ela se refere principalmente aos peões que têm dificuldade de sair do esquema fazenda/pensão/fazenda, os chamados “peões-de-trecho”, isto é, os homens “sem eira nem beira”, desgarrados dos seus, prisi-oneiros por anos sucessivos do sistema da dívida e com os mesmos ou novos aliciadores e gatos.

        Justamente pela visão negativa a respeito dos peões, existe dona de pensão que acredita ser necessário controla-los, pois são “um bicho” e em bichos usa-se, se necessá-rio a força física. Sendo perigosos e imprevisíveis, é preciso estabelecer com eles um contato seletivo.

                        

“Na minha pensão, só entravam aqueles (peões) mais conhecidos... Não era pensão assim de pegar todo mundo. Aqueles que eu via que eram inconvenien-tes, (...) eu não gostava dele estar comigo. Eu não gosto de coisas assim muito bravas, porque peão...”.


        Ora como selecionar os trabalhadores, evitando uns e recebendo outros? Nas re-lações há sempre uma representatividade, como tão oportunamente observa Goffman (1999), como se houvesse uma espécie de teatro, com cenário, atores e platéia. O peão tenta impressionar bem a dona do estabelecimento que não o conhece. Ele pode ser feliz ou infeliz na representação de si, pois a margem de erro na representação sempre existe.

        O móvel do intercâmbio estabelecido entre ela e eles é a exploração dos últimos e há os que auferem sucesso econômico, como uma delas reconhece: “teve muito dono de boteco, dona de pensão que ganhou dinheiro em cima dos peões. Eu mesma construí uns barracos com o dinheiro que ganhei com eles (...) Hoje em dia é que a coisa mu-dou”.

        As estratégias utilizadas pelas mulheres, durante as estadias deles nas pensões esperando os aliciadores, são reguladas por regras que visam a ausência do conflito. O peão não tem permissão de se fazer acompanhar por prostitutas, as chamadas “mulheres de ambiente” ou “meninas”. Ali, mesmo sendo pensão, é também lugar doméstico, que deve ser protegido de contaminação da rua, principalmente se a dona do estabelecimen-to tem filhas. Uma delas explica: “tenho duas meninas de menor, por isso eu nunca acei-tei mulherzada... Só aceitava mulher se fosse casada com o peão”. Outra regra é o limite da bebida alcoólica: “não despachava (vendia) muita cachaça porque se despachasse muito, eles ficavam muito bêbados. Dava briga, então eu regulava. Eles não queriam que eu regulasse não, mas eu regulava”. Outra dona de pensão confirmou que “colocava limites na quantidade de bebida e dizia: senão, vocês vão trabalhar só para pagar a conta (da bebida)”. Ela precisava impor “limites” e “regular” uma gente distante de casa e do controle social imediato imposto pelos seus parentes e amigos.

        O controle e o limite vão além da bebida. As donas de pensão devem ser capazes de organizar internamente o espaço na distribuição dos seus hóspedes, e o espaço que ela mesma e os seus vão ocupar, pois em geral os quartos são protegidos apenas por uma simples cortina de pano e a intimidade se torna mais vulnerável. Ela é cozinheira, arrumadeira e gerencia uma casa mais extensa: o “hotel pioneiro”com escassos recursos.

        A relação estabelecida entre elas e seus clientes pode ir além de um interesse e-conômico e adotar valores comuns ao da “casa dos parentes”, quando, por exemplo, se apaixonam por eles e estabelecem ou não uma relação afetiva estável. Ou adotam uma atitude maternal “me obedeciam como se fossem meus filhos mesmos” ou ainda “exigia que me respeitassem, para que quando eu falasse, eles não teimassem...”. Outras buscam utilizar valores que podem ser interpretados como um tratamento dispensado aos iguais “os problemas que surgem com os peões devem ser resolvidos com conversa... Quando tem qualquer problema, chego e converso, converso muito e aí termina tudo bem”. O conversar, no entanto, pode indicar uma maneira mais eficiente de exercer a dominação e dispensar o uso da violência, ou pode ainda significar o uso da mentira e da fraude. Além de utilizarem o instrumento da conversa, elas citam gatos, dando a eles neste caso um sinal positivo, que fazem o mesmo: “os gatos conversam com eles (peões)”.

        As donas dos “hotéis” falam com certa nostalgia do passado, quando dezenas de fazendas se instalaram no Mato Grosso e no estado vizinho, o Pará. Era um fervilhar de pessoas que enchiam seus estabelecimentos comerciais, faziam circular dinheiro e da-vam colorido às cidades e vilas. Contudo, agora a situação é diferente. Muitas fazendas foram total ou parcialmente desativadas ou como, estão instaladas, não precisam mais de tanta gente e paralelamente os financiamentos foram suspensos. Derrubar a floresta deixou de ser visto como benfeitoria, mas um problema ambiental. Sobre os impactos dessas alterações em seu negócio, comentou uma dona de pensão: “Aí não dá para a gente ficar juntando tudo (peão) sem ter serviço. Por isso eu parei de mexer com isso...”, constata a dona de pensão. E continua:

                        

“Com a queda das empreitas, os peões estão tudo por aí e ficam a pedir ‘Maria dá pra gente ficar?’ ‘Não tem um gato por aí, não?’ ‘Ah! Não tem jeito porque a gente não tem dinheiro’. Tem muito disso por aí, eu mesma deixo eles ficarem, digo: se quiserem ficar uns dois três dias descansando, enquanto vocês arrumam serviço pode ficarem. Dou comida de graça... Já fiz isso demais aqui. Aí eles fi-cam sem pagar... A gente deixa eles ficarem, porque eles já deram muito lucro para a gente, sabe ? Deram muito lucro... A gente fica com dó de baterem na porta da gente e a gente puxar a porta”.


        Com a queda do número das “empreitas”, a situação econômica delas, assim como de outros que viviam da “rede” do trabalho escravo (Breton, 2002), sofreu um abalo que se exprime nas palavras de uma ex-dona de pensão “Deus me dá o jeito de eu viver”. Durante a realização das entrevistas eram menos numerosos os trabalhadores em trânsito e os que chegavam à região para morar. A frente de expansão no momento é aquela que se encontra na chamada Região do Meio, próxima ao rio Iriri, em São Félix do Xingu, no Pará, e as rotas de aliciamento se concentram especialmente no Centro-Oeste e no Nordeste.

        Através da fala, as donas de pensão apontam para uma percepção não homogê-nea a respeito dos peões. Reconhecem que a posição ocupada por eles no sistema de aliciamento e trabalho os leva a uma “vida muito ruim”, contudo predomina a percepção que o desqualifica: ele não faz nada para mudar sua própria situação, é desonesto, im-previdente, bêbado e brigão.

        De fato, possivelmente diversos peões, graças inclusive ao grau de rejeição so-frida, assumiram a identidade que lhes foi atribuída. O que faz lembrar os jovens, filhos de outsiders da cidade analisada por N. Elias e J. Scotson (2000). Eles também, em rea-ção ao estigma e à desqualificação que sofriam, adotavam comportamentos provocati-vos, principalmente o peão-de-trecho, longe dos seus, ou mesmo sem parentes, peram-bula de fazenda em fazenda, pensão em pensão. Entre eles alguns têm propensão ao alcoolismo.

        Ao atribuir ao próprio trabalhador a vida que leva, as donas de pensão explicam “se eles colocarem a cabeça no lugar, eles podem ter esperança, se pararem de beber, porque é a bebida que derrota eles, é a bebida que faz eles brigarem e fazerem negócio mal feito. Se não beberem não se descontrolam”. Mesmo sabendo da existência da dívi-da como mecanismo de retenção das pessoas, e de nunca terem visto um “foiceiro” e “motoqueiro” 10 mudarem de situação financeira, elas não demonstram reconhecer que o problema é também estrutural, que a vida dos aliciados é marcada por problemas cuja resposta não depende apenas deles.



Mulheres de ambiente



        A pesquisa percorreu dois lugares de prostituição, em cidades diferentes. Ambos eram despojados de conforto, com quartos sem banheiro, pia e armário para roupas. Havia apenas um cordão de arame que servia de apoio para as roupas dos usuários do espaço. Um banheiro precário, de uso comum, funcionava fora da casa e exalava mau cheiro. Na atividade de prostituição há a proprietária do local e as “meninas” ou “mu-lheres de ambiente”. A categoria “meninas” parece ser auto classificatória, enquanto "mulher de ambiente” é uma categoria utilizada pelos de fora, os não pertencentes ao grupo. As “meninas” têm histórias de vida que se aproximam, pois geralmente perten-cem a famílias pobres e numerosas, e costumam sair de casa cedo. Tímidas ou desconfi-adas diante dos entrevistadores, se recusaram a falar no primeiro momento. Uma falou e, mesmo bêbada, não permitiu, ao contrário da dona de ambiente, que houvesse grava-ção; outra, sóbria, só falou horas depois do primeiro contato e também longe do grava-dor. Utilizam, quando contam suas histórias, expressões tais como “sofrida” e “discri-minada”. Nisso concorda uma das donas de ambiente: “a vida delas é sofrida. Elas se sentem discriminadas e a maioria vem de longe, de outras cidades. Elas não ficam na mesma cidade e não usam o nome verdadeiro. São passageiras”.

        Ser de fora, trocar o nome, permanecer pouco tempo em cada lugar, acrescido do fato de exercer uma atividade percebida como negativa, coloca a “menina” em uma po-sição de “sem identidade”, como definiu uma dona de ambiente “chegam muitas meni-nas aqui com a bolsa nas costas. Você vê elas por fora, você não sabe por dentro como elas são”. A reunião destes elementos que cercam as “meninas” provoca que: “elas se sentem discriminadas. Outro dia fomos a uma loja e outras mulheres começaram a a-pontar para a gente e ficavam cochichando”.


        Ainda em relação à discriminação: "elas falam que já tentaram arrumar serviço, mas são discriminadas. Quando vão trabalhar em casa de família e a patroas descobrem não querem mais porque ficam com medo de sair e deixar os maridos em casa com elas”. Aqui se chama atenção para o seu lugar social. Elas pertencem ao mundo da rua, do perigo. Quando afirma “elas tentam arrumar serviço”, a categoria serviço aparece como sinônimo de trabalho, como as “meninas” buscam trabalho e serviço, parece que para a entrevistada, dona do local, o que elas fazem não é nem uma nem outra coisa. Além disso, a mesma dona de ambiente, entende e distingue sua atividade, da atividade realizada pelas “meninas”: “o meu trabalho é como um outro qualquer... Eu trabalho aqui, mas tenho minha residência em separado. Chego tantas horas e saio tantas (...) Sempre vou dormir em minha casa. Quando vou embora deixo um rapaz tomando con-ta”. Para a dona de ambiente, embora sua atividade seja um trabalho como outro qual-quer, pois “todos os serviços tem suas bondades e desvantagens’ acredita que haja dis-criminação e por isso explica que “não faria esse trabalho” em sua cidade de origem.

        Sentir-se explorada é outro elemento apontado pelo grupo das “meninas”. Uma delas explica:

                        

“Eu trabalho para os outros. Aqui não é meu. Ganho trinta por cento e a minha patroa só quer o dinheiro, mas eu fico trabalhando assim para pagar meu aluguel. Estou aqui só para cuidar dos meus filhos. Eu vivo aqui não é porque eu quero, se eu bebo não é porque eu quero...”


        Como de fato as “meninas” têm a mesma origem social dos peões, são de famí-lias pobres de área rural ou semi-rural, e se percebam discriminadas pela cidade e explo-radas pela dona do ambiente, elas podem também compreendê-los como “sofredores”. Uma delas observou que “eles chegam aqui com a sacolinha nas costas, procurando comida, água para tomar (...)”. É um cliente que chega sedento de tudo, até de água. A compreensão pode ser recíproca. Ou não. Um peão explicou: “a sociedade explora a prostituta e a prostituta explora o peão”.

        “Meninas” e “donas de ambiente” não têm, muitas vezes, a respeito dos peões uma percepção negativa. São mais generosas que as proprietárias de pensão. Uma dona de “ambiente” explicou: “faço tudo para eles... Eles me respeitam porque sou muito amiga, muito amiga mesmo”. Por ser amiga, “os peões mais conhecidos eu levo para comprar roupa, sapato, rede...”. E continua:

                        

“geralmente o que eu converso mais com elas (“meninas”) é sobre isso, sobre a honestidade. Às vezes elas vão dormir com um (peão) que está bêbado, então eu digo: antes de dormir chama ele e uma pessoa que estiver boa para conferir o que ele tem nos bolsos para amanhã de manhã não ter problemas”.


        É uma amiga que conversa e protege. Protege para que não gaste tudo com a be-bida e com suas próprias “meninas”, esquecendo-se de adquirir objetos pessoais essen-ciais como a roupa, o sapato e a rede, e os protege para que não sejam roubados ou ima-ginem que estão sendo. As “meninas” não só precisam ser honestas, mas têm que pare-cer honestas aos peões. Por isso a necessidade de conferir com testemunha o dinheiro existente.

        As “meninas” e os peões sentem-se próximos no estigma e exploração sofridos. Contudo, para uma dona de “ambiente”:

                        

“Eles se sentem mais discriminados que as meninas. Se uma das meninas chama um deles para ir à rua comprar algo, se ela estiver de short e chinelos ele vai, mas se caso ela se arrumar, colocar uma bolsinha, óculos ele desiste de ir e diz ‘vou não, estou muito feio. Estou muito desajeitado para ir mais você’”.


        Por outro lado, os peões são uma alternativa para as “meninas” ganharem uma identidade de mulher “honesta”. Conforme declarou uma dona de ambiente “tem época que isto aqui está cheio de meninas, outra hora tem pouquinho. Muitas meninas acom-panham os peões, vão morar com eles”. Esta decisão pode ser uma resposta para os pro-blemas de um e de outro. Como a área é de ocupação recente, a imigração mais expres-siva é masculina, o fato ocasiona escassez de mulher para namoros, casamentos e “jun-tamentos”.

        Entre os homens, os que gozam ali de menos status, são justamente os peões em trânsito, estranhos para a população estabelecida e sobre o quem o estigma e a desconfi-ança são maiores. As famílias não querem que as filhas os namorem. Um sindicalista, ex-peão explicou:

                        

“Quando jovem, arranjei uma namorada, e fui pedir ao pai dela o consentimento para o namoro, o pai disse que a filha dele não ia namorar peão, que não queria o namoro. Aí eu vi a discriminação que o peão sofre, entendi que não ia ser possí-vel namorar filha de família”.


        Sem esposa, é difícil que estes possam se estabelecer na região e se tornem pos-seiros. Ter terra e trabalhar na terra pressupõe normalmente a presença da companheira, a constituição de uma família o que alivia o isolamento e a solidão na mata. Ora se eles não conseguem uma mulher para constituir família também não conseguem terra e, por outro lado, sem terra, não têm casamento. Entra em um círculo vicioso. Um jovem em idade de casar se lamenta “acho que para casar tem que ter terra da gente e eu não te-nho”. Ou conforme ressaltou um padre preocupado com a celebração de poucos casa-mentos: “as famílias se preocupam com o local onde o casal vai morar, do que eles vão sobreviver”. Por outro lado, é comum encontrar relatos de “juntamentos” de peões com “meninas”, conforme revelou uma dona de ambiente “muitas meninas acompanham os peões, vão morar com eles”. Ela foi capaz de enumerar seis de suas “meninas” que ha-viam constituído família desta forma e moravam nas proximidades.

        É interessante observar que a “estrangeiridade” do peão, da “menina” e a própria região sendo composta por tantos estranhos ao local, possibilita a constituição dessas novas famílias. Por serem dois segmentos relegados e marginalizados, acrescido do fato de estarem próximos tanto física quanto socialmente, “às vezes eles (peões) contam a vida deles, contam os problemas deles de solidão, sofrimentos pra gente. Muitos aca-bam se interessando por alguma menina e elas seguem com eles”. Os “juntamentos” se realizam e conferem a ambos um status relativamente distinto do ocupado anteriormen-te.

        Os peões e suas novas parceiras são beneficiados socialmente. Ele tem mais chance de obter uma terra e se estabilizar; ela, que teria menos chance de contrair um casamento com um jovem que possuísse família na região, pode agora fazer uma mudança social importante. Terá chance de construir um novo modo de ser visto, libertando-se aos poucos do outro que era tido como “negati-vo”. O peão torna-se chefe de família e muitas vezes deixa de ser peão-de-trecho; ela, até então sem identidade, ganha uma, cujo referencial advém do próprio “juntamento”, mesmo se este é algo distinto do casamento para a sociedade local, predominantemente camponesa. É algo inferior, passível de ser desfeito a qual-quer momento, conforme disse uma avó “ele (neto e peão) já foi juntado com outras, agora tá juntado com aquela mulherzinha que está lá”. Embora no caso não tenha sido possível averiguar se a referida “mulherzinha” era ou não uma ex “menina”, a citação revela algo de desqualificação.



Conclusão



        As memórias recolhidas dessas mulheres diversificadas sugerem uma sociedade hierarquizada, mas com fronteiras nem sempre bem delimitadas. Os grupos em princí-pio antagônicos são compostos pelo peão e seus parentes, de um lado, representando o elemento explorado; do outro lado, representando os exploradores, o fazendeiro e seus prepostos que formam a extensa rede que viabiliza a escravidão por dívida. Estas cate-gorias se relacionam e se mesclam e formam o sistema de dominação vigente. Não só as mulheres que participam e alimentam o esquema de exploração são também vítimas de exploração, como as “meninas”, como são alguns dos homens, em uma cadeia de man-do e poder que, dependendo do tamanho da empreita, envolve mais de um empreiteiro, vários sub-empreiteiros, cantineiros, fiscais, motoristas e aliciadores, além do pessoal diretamente ligado à própria empresa como o proprietário e seu gerente. O mesmo em-preiteiro pode se sentir também vítima do fazendeiro e ambos se indisporem, ou o sub-empreiteiro pode se sentir lesado pelo empreiteiro principal. Os empreiteiros ou os sub-empreiteiros, em atividades que envolvam poucos homens, podem ser parentes ou ami-gos dos demais peões e também se tornar prisioneiro da dívida do próprio trabalho. Em um dos casos analisados, a mulher do peão era irmã de criação do próprio fazendeiro em cuja propriedade o esposo havia sido libertado pela Polícia Federal e pelo Grupo Espe-cial de Fiscalização Móvel do Ministério do Trabalho. E ela sentia conflitos, pois de um lado era de dentro da casa do fazendeiro, era “parenta”, do outro o marido havia sido vítima.

        Todas as entrevistadas aqui têm algo em comum com os peões, relacionam-se com eles de certo modo e em certas circunstâncias mesmo não indo ao local do trabalho nas fazendas. Umas são “parentas” e se tornam por isso também vítimas, porque além de dependerem economicamente deles, sofrem a angústia da espera e o medo de que algo lhes aconteça. Uma, inclusive, sem notícias do marido há muitos meses, temia que estivesse morto.

        Se todas têm alguma relação com os peões, das diversas entrevistas, só duas mu-lheres estiveram em fazendas no Pará. Uma porque era também empreiteira, outra por-que acompanhava o esposo. Algumas esposas e companheiras podem acompanhar seus homens, dependendo de muitos fatores, como foi descrito no corpo deste texto. Outras mulheres, como as “meninas”, têm menos chance de ir. Estas, como a cachaça, são as-sociadas e compreendidas como sinais negativos, capazes de subverter a ordem, alterar o ambiente, diminuir a produtividade do grupo e dar prejuízo. Por isso, mesmo um tra-balhador reconhecia “mulher com peão dá bagunça, não dá certo”.

        Algumas se inserem na lógica do aliciamento e dele usufruem lucros, como as donas de pensão e proprietárias de “ambiente”. Estas aparentemente utilizam para com os peões recursos de dominação que são diferentes dos recursos masculinos. Tendem a ser o lado “suave” e “compreensivo” da relação, enquanto a dominação masculina é expressa pela força. Por isso no discurso destas mulheres não é rara a afirmação de que “conversava” com os peões, como vimos anteriormente. Uma delas, que antes de se tornar dona de “ambiente” no Mato Grosso, havia sido empreiteira como o próprio ma-rido. E como empreiteira, explicou, recebia do esposo os trabalhadores mais difíceis, os inadequados ao trabalho. Ela com “conversa” e jeito ia transferindo o peão de atividades produtivas até acertar em alguma. Há, contudo, histórias que revelam a participação de mulheres no uso da força. Uma, conforme denúncia do Ministério Público, apontava a arma enquanto o esposo, empreiteiro famoso, espancava trabalhadores que haviam ten-tado escapar. Além disso, não significa que os empreiteiros ou a rede dos homens en-volvidos no aliciamento e na escravidão sejam sempre ou necessariamente truculentos. Entre eles há diversos que são sedutores e envolventes quando querem ou precisam; e muitas vezes o são.

        Constatamos que, como a maioria dos próprios peões, as mulheres com ou sem relação de parentesco não colocam em dúvida a legitimidade do sistema de dívida que aprisiona. A dívida em si, não lhes parece razão suficiente para a fuga. Mesmo para as da família, se há dívida, ela deve ser paga. Quem não paga tem a reputação prejudicada. Conforme uma esposa, se seu marido prometeu fazer determinado serviço e se endivi-dou: “é pegar o serviço e fazer todo. Não deixar por fazer, mesmo que tome prejuízo”. Vão aceitar a saída, a fuga ou a denúncia contra a fazenda quando consideram que algo do contrato oral foi violado, quando alguma coisa extrapolou aquilo que consideram razoável.11

        Os discursos destas mulheres refletem a posição que ocupam em um processo histórico que se desenrola juntamente com a construção de uma identidade de estabele-cidas. Algumas, há vinte anos atrás eram outsiders no Mato Grosso, pertenciam ao gru-po dos explorados, possuíam o lugar social de impedimento de decidir, agir, argumen-tar.


        Mais experientes agora elas, que já não eram passivas e quebravam barreiras, cons-truíram novas estratégias de lutas e paralelamente criaram uma identidade de grupo. São de certa forma estabelecidas, têm menos estranhamentos, são reconhecidas na comuni-dade onde vivem e ampliaram a rede de aliança composta por vizinhos, parentes, gente do sindicato e da igreja. Estabelecidas, estas mulheres sonham, desejam adquirir novos espaços e sabem que ainda há limites, como explica uma esposa “Só não tenho terra aqui porque sou mulher e não tenho condição de fazer serviço que homem faz na terra . Se eu tivesse condição de cuidar da terra, eu queria plantar, eu queria mexer com a la-voura, eu queria ter umas cabeças de gado”.



Referências Bibliográficas:


BRETON, Binka Le. Vidas roubadas: a escravidão moderna na Amazônia Brasileira. São Paulo: Loyola, 2002;
ELIAS, Norbert e SCOTSON, John. Os estabelecidos e os outsiders. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2000
ESTERCI, Neide. “A dívida que escraviza”. In: Trabalho escravo no Brasil contempo-râneo (UV.AA). Goiânia: CPT, p. 101-125, 1999
....................Escravos da Desigualdade: estudo sobre o uso repressivo da força de tra-balho hoje. Rio de Janeiro: CEDI, 1994.
GOFFMAN, Erving. A representação do eu na vida cotidiana. Petrópolis: Vozes, 1999.
MARTINS, José de Souza. “A Reprodução do Capital na Frente Pioneira e o Renasci-mento da Escravidão no Brasil”, in Tempo Social, rev. de Sociologia. USP, Volume 6, números 1-2, 1994 (edit. jun. 1995).
MOORE Jr., Barrington. Injustiça: as bases sociais da obediência e da revolta. São Paulo: Brasiliense, 1987;
POLLAK, Michael. Une identité blessé – etudes de sociologie et d’histoire. Paris, Édi-tions Métailié, 1993;
................... “Memória e Identidade Social” in Estudos Históricos 10: teoria e história. Rio de Janeiro: vol. 5, n. 10, p. 200-215, 1992;
REZENDE-FIGUEIRA, Ricardo. Pisando fora da própria sombra: a escravidão por dívida no Brasil contemporâneo. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2004.




1 Doutor, professor DSS/PUC/RJ e Coordenador do Grupo de Pesquisa sobre Trabalho Escravo (GPTEC) no CFCH/UFRJ.
2 Professora - titular ESS/UFRJ e Coordenadora GPTEC/UFRJ.
3 Mestre IFCS/UFRJ e Pesquisadora GPTEC.
4 No caso estudado, os escravos por dívida são pessoas aliciadas em outras regiões e levadas para as fazendas do Pará. Ali, além das condições degradantes de alimentação e moradia, são retidas no trabalho através de pressões físicas e/ou psicológicas em nome de dívidas contraídas com o contratante. Sobre a discussão acerca do conceito veja Martins (1994), Esterci (1994) e Rezende Figueira (2004).
5 As entrevistas fazem parte de um volume bem superior de observações e depoimentos de mu-lheres e homens colhidos no Pará e Piauí, que se encontram no arquivo do GPTEC no IF-CH/UFRJ.
6 Os empresários rurais “terceirizam” o trabalho através de homens que se constituem como “empreiteiros”. Estes, com suas redes de colaboradores, aliciam pessoas, leva-as ao trabalho e as mantém nele pela coerção.
7 Apoderar-se de terras alheias através de fraude ou de violência.
8 Os empresários rurais “terceirizam” o trabalho através de homens que se constitua como “em-preitáveis”. Estes, com suas redes de colaboradores, aliciam homens e os leva ao trabalho e os mantém nele pela coerção moral e/ou física.
9 Sobre a memória, inclusive de períodos dolorosos, como o de um campo de concentração, vale a pena ler Pollack. (1992; 1993).
10 Tipos de peões. O “foceiro” opera a foice, o “motoqueiro”, a motoserra.
11 Sobre as razões sociais que levam alguém à indignação veja B. Moore (1987).